Cantando. Foi assim que Seu Antônio, de 46 anos, chegou na Casa do Transplante AMEO-HC na última segunda-feira (07/08). O piauiense, nascido no interior e criado em Teresina, partiu sozinho para São Paulo em 2000 e nunca olhou para trás. Desde então trabalhou sem parar – como vigia, segurança e caseiro -, sem descansar por tempo o suficiente para voltar ao Piauí e rever sua família. São 10 irmãos que ainda moram no estado, e que Antônio via somente por vídeo, quando ligava para celebrar ocasiões especiais.
Até que, em outubro do ano passado, sua vida virou de cabeça para baixo. Após começar a sentir uma forte dor nas costas, uma amiga o pressionou a ir ao hospital. Seu Antônio afirma que, antes disso, nunca havia ficado seriamente doente ou mesmo faltado a um dia de trabalho. Para ele, uma doença sempre foi algo que passava com o tempo, sem necessitar muito cuidado. O diagnóstico de mieloma múltiplo, então, veio como um choque: “Não esperava um dia ter essa doença, fiquei surpreso. Esse tipo de câncer que não tem cura, só tem tratamento. Geralmente você tem uma doença, mas pensa que vai ser curado, ficar bem. Com essa, você sabe que não vai ser curado. Tem só tratamento para você melhorar a vida e viver o máximo que você puder.”
O ex-vigia, entretanto, guarda consigo faces, para muitos, surpreendentes. Como ele mesmo afirma, quem vê esse homem, de baixa estatura e casca dura, tende a não prever a potência da voz que se esconde por baixo: “As pessoas falavam ‘Aquela vozona toda altona, olha o tamanho dele aí! Mas tem a voz de um homem grande’”. Ainda no Piauí, ele começou a participar de grupos de canto na Igreja, hábito que só deixou de lado com a chegada do diagnóstico, em 2022. São mais de 30 anos como cantor principal de grupos líricos católicos, e a partir disso sua trajetória artística tomou novos rumos. Dentro das diferentes paróquias em que tomou parte, Seu Antônio também escreveu músicas, montou e participou de encenações.
Mas se engana quem pensa que só dentro da Igreja ele pôde exercer sua veia artística. Ele já escreveu poesia, participou de grupos amadores de teatro e fez aulas de violão. Como ele próprio explora, sempre foi um fã sensível das artes plásticas e líricas: “Eu gostava de ler muito sobre os grandes pintores. Do Van Gogh, por exemplo, que cortou a própria orelha, eu sempre gostei. Fã de poesia, eu sempre fui, mas eu sempre fui um ultrarromântico. Na época, quando eu era muito mais novo, eu cheguei a ter o sonho de morrer que nem na idade do Álvares de Azevedo, que morreu com 21 anos de idade. Eu era novo, mas depois de fazer 21 anos de idade eu pensei ‘não vou morrer nada!’ Eu era muito fã dele, e ele tinha aquele negócio de morrer. Aquele poema em que ele fala: ‘Descansem o meu leito solitário / Na floresta dos homens esquecida, / À sombra de uma cruz, e escrevam nela: / Foi poeta – sonhou – e amou a vida.’ É um dos poemas que eu mais gosto dele, que é muito forte, né? E o Lord Byron também, que é dessa época e escreveu uns poemas que inspiraram até o Álvares de Azevedo. Então sou muito fã do Lord Byron, da poesia dele.”
Para aqueles que tomam um tempo para conversar com ele, o ultrarromantismo é evidente. Sua melancolia fica clara quando afirma: “As pessoas veem você por fora, veem você rindo, mas não sabem o que está dentro do seu coração.” Também não tem vergonha de tecer falas sobre as desilusões amorosas que pintaram sua juventude e sobre o sonho, agora já adormecido, de encontrar um amor genuíno e profundo. Como ele afirma: “Para você arranjar qualquer pessoa para só se envolver, fazer filho, é fácil. Agora, para arranjar alguém que goste de você, que você se case, formar uma família de verdade, é que é complicado. Então, isso me decepcionou muito e me fez me fechar mais à vida”. A principal justificativa que ele aponta para sua vinda a São Paulo tantos anos atrás é, justamente, um grande amor não correspondido, que esperava esquecer colocando os quilômetros em seu caminho. Se a estratégia funcionou ou não, Antônio é resistente em dizer.
O amor pela arte se reflete também em sua outra grande paixão: os animais. No terreno que cuidava na Zona Oeste de São Paulo, criava centenas de aves, entre elas galinhas, gansos, marrecos, galinhas d’angola e vulturinas, além de seus gatos e cachorros. E entre os nomes escolhidos a dedo, podemos identificar referências a artistas, escritores e personagens famosos da história e do cinema. Faziam parte da família os patos Rembrandt, Renoir, Maquiavel, Anck-su-namun, Imhotep e Hatshepsut. Já entre os gansos se destacavam o Faraó e o Ptolomeu. Tudo isso para não esquecer seu cachorro, que carregava no nome uma referência dupla: o Beethoven.
Criava não para vender ou matar, mas por amor e companhia. Nos últimos anos, ele tinha se afastado das pessoas e desenvolvido uma relação muito forte com seus animais. “Eu fiquei todo esse tempo isolado, cuidando dos meus bichos só, assim sem querer muito papo com as pessoas, nem nada”. Afirma categoricamente que preferia dar um animal para alguém que sabia que cuidaria dele, do que vender para outro que o mataria. Mas agora, com a doença, teve que se afastar de sua revoada.
Por isso, o diagnóstico de mieloma múltiplo veio como um baque ainda mais doloroso. Além da doença em si, o sistema imunológico enfraquecido também significou se afastar de seu terreno e de seus animais, já que os riscos de infecção seriam grandes. Isolado e sem poder trabalhar, Seu Antônio passou por momentos difíceis e pensou até em desistir do tratamento, penoso por si só. Foi quando sua irmã, Jacinta, largou tudo e veio do Piauí para acompanhar seu irmão ao longo deste processo, que tem duração indeterminada.
Juntos, os dois são os primeiros moradores da Casa do Transplante. Depois que Seu Antônio realizar o transplante de medula óssea, contando com todo o apoio da AMEO para seguir o método de alta precoce, ele pretende retornar à Teresina, onde vai poder continuar sua batalha contra o câncer com o apoio de sua família. E, apesar de toda as dificuldades e reviravoltas nos últimos meses, esse modelo de São Francisco piauiense, amantes das artes e dos animais, continua lutando atrás de um sonho final: “Se não for a vontade de Deus que eu vá dessa doença, se eu puder superar tudo, eu ainda tenho o sonho de um dia ter um lugar para mim (sic) criar os meus bichos, e voltar a ter uma criação de animais.”
Texto: Gabriel Alegria/ Fotos: Andressa Villagra